segunda-feira, 25 de maio de 2015

A dança da libertação coordenada por Tulipa Ruiz em "Dancê"




Capa do disco.

Que Tulipa Ruiz carrega em suas músicas um forte incentivo à aceitação de sí e uma energia de toca qualquer um que a ouça (mesmo aqueles que não curtem seu trabalho), quem a conhece já sabe. E em “Dancê” isso é mais forte e explícito do que nunca.

           “Começou! Agora você vai tomar conta de sí” (Faixa 1, “Prumo”)           

É exatamente essa a proposta do disco, muito bem sintetizada no próprio título do álbum, numa metáfora em que os tímidos para danças em festas e pistas públicas devem se permitir esquecer olhares e julgamentos e deixar o corpo ser levado conforme a música mandar. E o ritmo acelerado, de início repentino e bateria forte, obriga todo corpo morto a sair do sofá, arrastar mesas e escrivaninhas e começar a "coreografar".

Numa era em que se padroniza todas as coisas, culturas e estilos, um disco como esse é importante para encorajar a manifestação das diferenças e, consequentemente, a preservação do bem estar de ser quem é (por mais clichê que isso possa soar).


Na faixa 2, “Proporcional”, cheia de metais e mais bailada, mas ainda na empolgação de início de festa, que remetem às discotecas do tempo da brilhantina, temos um bom exemplo do “não se importar com o alheio”, quando a letra enfatiza as diferenças físicas (“Visto GG, você P/Você P, eu GG/Visto GG, você P/Você P, eu GG/Redondo, quadrado e reto/Cada um tem seu formato”), dando espaço e vez para todos os tipos que andam por aí. E, cá entre nós, todos os tipos de corpos deveriam ser exaltados, e todos tem seu espaço, como a própria letra conclui:

Aconteceu de caber
Coube em mim, coube em você
Calhou de encaixar legal
Envergadura, estatura, peso e tal
”.

Já que o ser humano é lindo como é, seja como for, não poderia faltar uma exaltação admirada por um ser bem alinhado como o punhado de elogios em "Tafetá", primeira faixa para se dançar a dois, guiada pela elegância e charme do ritmo quase caliente, seguindo os passos de beleza que a música sugere:

"Fino, elegante,Muito trato na lapela,
Tem um padrão desenhado

Tem casaco engomado"

O incentivo à libertação de sí independente de como o outro vê e pensa a respeito, leva também a reflexão das coisas que se perdem quando fazemos o contrário, e deixamos de viver desejos e vontades, prendendo o corpo para encaixa-lo aos moldes dos grandes olhos sociais. Essa reflexão e remorso sutil são claros em “Expirou”, sexta faixa do álbum:

Sinto falta de um tempo que eu ouvi dos amigos
Tava escrito num livro
Tocou numa vitrola
Foi dançado, cantado, recitado, falado
Publicado, sentido, decupado, contado
Mas eu não tava ali”

Essa opressão ao corpo acontece quando pensamos demais e esquecemos do poder do impulso em certas situações. E há antes mesmo desse remorso do disco um mantra anti-raciocínio na quarta faixa, “Elixir”, que com rasgadas rápidas na guitarra dão um tapa na cara de quem ainda não está no ápice de sua dança desde o início do disco:
  
Dormir é o meu sonho principal
Fechar os olhos sem ter para onde ir
Dormir é o meu sonho principal
Fechar os olhos sem ter para onde ir
Zero reflexão, zero
Zero reflexão, zero
Zero reflexão, zero
E entra no estado zen
.”

ZERO REFLEXÃO!!!

Quer resolução rápida e ágil para suas travas e medos? Busque os serviços de "Reclame", e tire as pragas dos preconceitos e estresses do dia a dia pois, como Tulipa canta em melodia convincente de levada leve e segura:


"Resolvo o seu problema com baralho
Com pôquer, bingo
Pra bituca de cigarro, eu tenho a solução"


E com o cérebro desligado partimos sem medo para a faixa 7, “Jogo do Contente”, onde, com pura emoção, em uma pegada mais pop e jogo de palavras cantado, os gestos impulsivos são justificados e defendidos como parte da vida, da evolução e da felicidade:

Todo motivo te leva a querer

Todo querer te faz ter vontade
Toda vontade te faz ter impulso
Todo impulso sempre me estimula
Todo sequência tem uma rotina
Toda rotina te causa estrago
Todo estrago merece um conserto
Todo conserto te modifica

Tá mais do que válida essa libertação toda do disco, não?

Ainda mais se pensarmos que o tempo é uma dessas coisas que gostamos e que sabemos ser efêmeras, e que as horas passam, fases mudam, lugares envelhecem, e nós também.

Ao se deixar levar, as coisas variam e você se conhece, se redescobre e se altera, tudo à sal e gosto próprio, vide faixa "Virou", com a presença da voz de Felipe Cordeiro, dando um tom mais romantizado à música:


"Varia o jeito de olhar
Varia o jeito de ser
Varia a hora e o lugar
Só não varia você
"


Quando a gente se liberta e se gosta como é, nossos olhos conseguem enxergar no outro uma beleza além do comum, como descreve a música para academia "Físico", uma das mais dance music abrasileirada do disco, talvez com referências ao clássico dos anos 80 "Physical", de Olivia Newton


É tempo de conhecer, experimentar. Há tempo para a calmaria também, mas isso é lá na frente, bem depois, mais precisamente na faixa 10, “Oldboy”, mais calma, com dedilhados leves na guitarra, ao declamar:


Um dia você vai descansar sem perceber

Vai ser natural e legal adormecer”.

E após o prenúncio de uma era de descanso, parte da vida de qualquer um, Tulipa encerra o disco com mais uma dose de coragem em “Algo Maior”, que nada mais é do que aquele ponto de luz misteriosa que nos incentiva a ir em frente na obscuridade das novas vontades e desejos, afim de nos deixarmos levar pela danças autônomas do nosso corpo:
Tá pra nascer algo maior
Que vá tirar do lugar as coisas
Que cismam em não andar
Tá pra nascer algo maior
Que tudo o que você já viu, leu, sentiu, soube ou ouviu
Não sinta medo e nem dó
De ser feliz e se soltar
De saber bem o que lhe convém
”.
Dancê é um disco que segue a linha de outras obras que caem como uma luva na época da padronização, por incentivar a livre escolha e manifestação da própria identidade.


Dance, solte-se, seja numa pista convencional ou nas pistas das ruas do cotidiano, o que vale é a dança ser natural.

Nível de órbita: 10.

Suas pernas estão coçando pra sentir a vibe do disco?
Então, ouça aqui!

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